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Entrevista a Amílcar Correia

"O Público é o pai sério e honrado que gerou o P3, um filho sério e honrado, mas mais ousado e divertido" Por Rafaela Santos
 
Recebe-me na redação, um espaço pequeno e impessoal. O som do teclado do computador, furiosamente batido, uma e outra vez. As duas jornalistas que trabalham nas suas secretárias parecem atarefadas. A pressão. O tempo urge. As notícias que precisam de ser editadas, alteradas e publicadas. Em cima de uma mesa um amontoado de jornais e a televisão ligada na SIC Notícias. Amílcar Correia troca algumas ideias com as jornalistas, dá-lhes indicações do que é preciso fazer. Dirige-se a mim. Puxa uma cadeira e sugere que me sente no sofá atrás de mim. Insisto que não, prefiro a cadeira. Sob o corpo magro e alto lá se senta. Quando o questiono sobre a sua exata função no P3 diz-me, em tom humorístico, para escrever num papel, que corro o risco de me esquecer de tamanha definição. Foi estagiário, editor de várias seções e subdiretor em diversas direções do jornal Público. Atualmente é diretor do P3, editor de novos projetos e gestor de redes. Além do gosto pela arte de informar, sempre que pode gosta de viajar. Viajar é para si "uma das facetas humanas mais interessantes". Viajar é conhecer as pessoas, as histórias dos locais. É assumir um papel de alguém ávido de conhecer o outro. Viajar é isto. Pôr em causa os preconceitos etnocêntricos.
 
Cada vez mais é difícil fazer jornalismo em Portugal?
Diria que sim, por variadíssimas razões. É importante ter em conta que a diminuição de receitas das empresas de media limita novas contratações, o que provoca uma diminuição do número de pessoas que trabalham nas redações e cria condicionalismos ao jornalismo mais investigativo. Na prática, somos cada vez menos a tentar fazer mais, mas por outro lado a tecnologia surge como uma ajuda na forma como se pode trabalhar, facilita a rapidez na procura de informação, por exemplo. Também é verdade que o jornalismo vive num período em que é preciso trabalhar não só para a edição impressa, mas para as edições digitais e torna-se mais exigente porque obriga de quem exerce a profissão outras aptidões. Depois as novas plataformas na generalidade são gratuitas, e a publicidade está ainda muito concentrada no papel. Os utilizadores como podem ler sem pagar deixam de comprar os jornais e as receitas de publicidade tornam-se insuficientes para colmatar a 1 descida das receitas. Há aqui um paradigma: nunca hoje se leu tanto como se lê, mas os media tem sentido uma redução nas receitas.
 
A falta de investimento degrada o jornalismo?
Há exemplos de degradação por todo o lado, podemos encontrá-los quer numa universidade, numa estrutura partidária, num hospital. Eu não diria que o jornalismo se está a degradar. O que diria é que o facto das receitas das empresas de media terem vindo a baixar impede que possam ter políticas de investimento, que tenham em conta a necessidade de aumentar a qualidade do jornalismo que praticam e as pessoas necessárias para fazer um trabalho mais aprofundado.
 
Diz que nunca se leu tanto como hoje se lê. São as novas plataformas que aproximam os leitores aos meios de comunicação?
Os leitores têm hoje muito mais possibilidade de ler em qualquer hora e em qualquer lugar a informação. Há maior liberdade e facilidade de acesso. Numa cidade como Porto ou Coimbra não é possível comprar o New York Times, mas é possível ir a um browser do New York Times ou a uma aplicação para tablet e ler aí o jornal. Ou seja, há todo um novo mercado, toda uma nova possibilidade de se poder consultar informação. Há uma alteração do paradigma: as novas plataformas funcionam como uma espécie de quiosques que através de uma unidade mínima de informação, o link, abrem um novo campo de comunicação. É algo que não acontecia com as edições impressas que tinham limitações, desde logo pelas fronteiras geográficas. Hoje é possível chegar a leitores de todo o mundo, desde à Gronelândia, Brasil ou Guatemala.
 
O P3 é um bom exemplo disso?
Acho que o P3 é um bom exemplo porque as redes sociais são determinantes para chamar os leitores para o nosso site. Há algumas caraterísticas do P3 que são inovadoras: destaco o facto de ser o único meio de informação criado pelo target e para a target, ou seja, foi definido por um grupo de jovens jornalistas e utilizadores da internet e a pensar em alguém que tem as mesmas expetativas, a mesma leitura da realidade dos criadores. É a primeira vez que existe um órgão generalista que se destina a este nicho de mercado de leitores. Somos, 2 provavelmente, o melhor exemplo em Portugal de um órgão de comunicação feito numa lógica de crowdsourcing, ou seja, aqui o leitor que queira publicar os seus textos, os seus vídeos, as suas fotos é tratado com a mesma dignidade que qualquer trabalho jornalístico feito por um membro da equipa. Portanto, nós vivemos muito da participação de quem nos lê porque derrubámos a barreira quase intransponível entre emissor e recetor, o que nos aproxima muito dos nossos leitores.
 
O P3 surge à semelhança de outros projetos bem-sucedidos nos Estados Unidos da América e na Europa.
Sei que existem nos Estados Unidos da América algumas experiências entre jornais e a universidade. Também na Europa existem exemplos desses. Em Espanha há um acordo com a Universidade Complutense de Madrid com alguns meios de informação, nomeadamente com a VilaWeb, um site que publica esses conteúdos produzidos em contexto universitário. O P3 é um jornal digital que surge em 2006 fruto de um acordo entre o Público e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, através de um grupo de trabalho criado por estas duas instituições. Em 2010, concorre ao apoio do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) e depois da aprovação o site fica disponível em 2011. O P3 é feito a reboque da necessidade crescente dos jornais, e em particular do Público, de renovar os seus leitores. O Público nos formatos nos quais está presente, com a linguagem que tem e com o todo o seu posicionamento de mercado tornava difícil fazê-lo chegar ao contacto com públicos mais jovens e o P3 surge por isso. Digamos que o Público é o pai sério e honrado que gerou o P3, um filho sério e honrado, mas mais ousado e divertido e vive noutro mundo. Vive num mundo em que conseguimos ter na nossa agenda temas que não são abordados normalmente no Público. É uma forma do Público oferecer dois produtos de complementaridade para públicos diferentes.
 
E isso é uma forma de cativar o vosso público-alvo, os leitores mais jovens?
Alguém que tem vinte anos para se interessar por determinados conteúdos de um jornal é preciso que se reveja neles. O P3 ao abordar a questão da eleição de um novo parlamento em Portugal aquilo que nos vai interessar saber é o 3 que pensam os deputados mais jovens e não tanto quem vai ser o futuro presidente da Assembleia da República. Procuramos sempre ver o que é que o nosso público quer dali, o que mais lhes interessa. Os temas podem ser os mesmos, mas a forma de os abordarmos é que não é semelhante.
 
Mas isso não é a lógica de mercado? Dar ao público apenas o que quer ler?
A necessidade de obter lucro não é algo condenável, mas não deve significar o sacrifício da ética nem do interesse público. Daí não vem mal rigorosamente nenhum ao mundo, é preciso é que o trabalho jornalístico seja feito com qualidade e ponderação e jamais o interesse económico se deve sobrepor ao interesse público das matérias. Se temos um público que gosta mais de arquitetura do que design é natural que façamos mais arquitetura. É preciso conciliar o interesse público da nossa atividade com o interesse do público que nos lê.
 
O desconhecimento sobre temas de interesse público faz com que os leitores não gostem de os ler. Não considera que dar um tema só porque o público gosta pode contribuir para o desconhecimento?
Nós não somos monolíticos nem em termos de pensamento nem de atividade. Sabemos que se publicarmos um determinado artigo sobre um tema tem mais leitura porque temos conhecimento de quem nos lê e que género de pessoas consultam o site. Se, por ventura, existir um assunto que sabemos que não tem grande leitura, mas que achamos que tem relevância pública não o deixaremos de dar. Por outro lado, tentamos incluir na agenda assuntos que achamos serem importantes para o debate público, mas isso não faz de nós uma espécie de vanguarda esclarecida que vai obrigar o leitor a ler o que não quer. Há assuntos que abordamos que não estão no agenda-setting dos media, não são questões pedidas pelos leitores mas são questões que achamos relevantes. Isto funciona para nós como um modo de nos diferenciarmos do resto dos media, porque há um grande mimetismo entre os jornais que faz com que aborrecidamente sejam a mesma sucessão de temas e abordagens. Nós queremos ser diferentes de tudo isso. Não a diferença pela diferença, mas porque comungamos e fazemos parte de um largo grupo de pessoas que não se revê nas narrativas mais tradicionais dos media.
 
Para si, a diferença passa por dar uma roupagem nova a temas mais desinteressantes ou muito esmiuçados pelos media?
Sim. É uma questão de obrigação. O nosso papel é esse. Por um lado, falar dos mesmos temas mas de outra maneira, dar-lhes uma perspetiva diferente e por outro, introduzir novos temas à nossa maneira, temas que os outros não abordam. Por exemplo, fazemos muitos textos sobre jovens músicos ou cineastas que foram premiados pelos seus trabalhos de excelência, mas não conseguem divulgá-los porque as agendas dos outros media estão cheias. Nós somos uma redação aberta ao exterior, os leitores participam connosco, ajudam-nos a fazer o jornal. Somos feitos em rede, sem qualquer tipo de preconceitos, tratamos tudo por tu, quer os temas quer os leitores e, portanto, e isso permite-nos dar essa roupagem nova a acontecimentos menos apelativos ou extremamente abordados.
 
Foi para dar uma roupagem nova aos seus textos de opinião, que escrevia para a secção local Porto para o Público, que optou por uma escrita hostil quando se referia a Rui Rio, enquanto Presidente da Câmara Municipal do Porto?
(Risos) Há uma diferença muito clara entre o que é informação e opinião. O texto informativo implica determinadas regras técnicas que obrigam a que a história seja contada com base na reunião de todos os elementos necessários para a sua produção. Por outro lado, a opinião é um exercício livre de cada jornalista e de cada ser humano que queira utilizar a sua liberdade de expressão. Nunca, em caso algum, achei que fui ofensivo com o titular do cargo do Presidente da Câmara Municipal do Porto. É óbvio que chamar a um presidente de câmara extravagante ou mãos de tesoura é polémico, mas nunca fui processado pela escrita desses textos. Também me tentaram associar a um partido de esquerda, insinuando que o que escrevia enquanto jornalista era algo telecomandado por um partido. Nunca militei em nenhum partido, nem nunca fui visto em nenhuma ação partidária e portanto esses ataques são muito ofensivos para a minha honra profissional. (Pausa) Os textos foram a manifestação da minha opinião livre e assertiva que me caraterizam e que têm caraterizado a opinião dos jornais em Portugal que, infelizmente, é cada vez mais aniquilada o que impede os jornalistas de dizer aquilo que pensam sem 5 freio e sem medo de poderem ser alvo de represálias. Os meus textos podem ser polémicos e agressivos, mas coincidem numa lógica de opinião que no caso do Público é iniciada pelo diretor, o Vicente Jorge Silva. Prefiro essa agressividade, a clareza das ideias até às últimas consequências, do que um exercício rigoroso e autocensório como faz a maior parte da classe profissional.
 
O P3 é inicialmente pensado para ser um jornal impresso, mas constatam que não iria resultar. Foi a antevisão da morte dos jornais em papel?
(Risos) Isso dava um bom título. (Risos) Não. Vimos que não iria resultar porque o mercado não tinha espaço para mais um jornal num período em que a tendência era apostar em jornais gratuitos e os mais jovens estavam a ler cada vez menos. O P3 é um exercício ponderado e prudente de continuar a fazer jornalismo, independentemente do que viesse a acontecer aos jornais em papel, num contexto em que faltava em Portugal jornalismo digital feito de forma diferente, com uma linguagem mais multimédia porque o jornalismo digital não é apenas a junção de uma fotografia com um texto. Um texto para ser publicado no digital tem de ter vídeo, hiperligações, infografias, tem uma série de preocupações que não existem no papel.
 
Falemos da sua viagem por África que resultou num livro, A Balada do Níger. O que o levou a viajar até África?
O livro não é uma viagem, é uma sucessão de viagens que não foram feitas para originar um livro, mas para poder sair um pouco do meu dia a dia e da minha atividade profissional e para sair deste papel de grande chefe do P3 (risos). Viajar é uma faceta humana interessante, porque conhecer é a maior riqueza que podemos acumular quando viajamos. Viajar é conhecer o outro, perceber como é o outro porque somos sempre um outro para alguém e isso coloca em causa os preconceitos etnográficos e eurocêntricos que transportamos. Porquê África? Há todo um mito da viagem por África. Até há bem pouco tempo o grande interior de África era um intervalo do qual não se sabia rigorosamente nada. É o mito do desconhecido e ao mesmo tempo é um mito dessa incapacidade do ser humano tentar compreender o outro, ter um olhar etnográfico de respeito pelo outro e pela diferença. Depois há um bocado de África no meu nome. Chamo-me Amílcar e é um nome extremamente 6 comum e popular em países como S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde e desde infância havia um grupo de cabo-verdianos que se divertia a perguntar como é que me chamava porque aquilo os remetia para o país que tinham abandonado e para o herói do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), o Amílcar Cabral. Depois, gosto muito de literatura de viagem e leio muito esse género o que, de certa forma, influenciou a minha viagem.
 
Como disse as viagens não foram pensadas para originar um livro. O que o motivou a alterar esta ideia?
Cheguei à conclusão que poderia fazer o livro quando encontrei um rapaz em São Tomé e Príncipe que me perguntou o meu nome completo e eu lhe disse, em jeito de graça, que era Amílcar Cabral e ele disse-me que isso era impossível porque ele é que era o Amílcar Cabral. (Risos) E na verdade era. Era sobrinho do verdadeiro Amílcar Cabral. A partir deste encontro achei que tinha aí a possibilidade de misturar relatos de viagem não-ficcionais com ficção, com crónica, com histórias e fui olhar para alguns textos que fiz depois dessas viagens e achei que faziam todo o sentido juntos com uma ponte. Essa ponte era a minha viagem preferida, ao Mali, feita já com o objetivo de a incorporar no livro.
 
Pode-se dizer que o seu livro é uma semelhança com o livro Viagem por África de Paul Theroux?
(Risos). Não. De todo. Acho que Theroux tem alguns conceitos bons, como "divorciar-se" e meter-se no comboio mais próximo de casa e acabar na Patagónia, isso tem piada e torna a história interessante, mas fazer da viagem a África uma grande epopeia como se fosse um herói, não é para mim um bom exemplo. Prefiro mais a literatura de viagem de Paul Bowels que embora se possa dar ao luxo de viajar de jaguar pelo norte de África, faz isso de outra forma e consegue falar das pessoas que conhece e dos hábitos que observa com genuinidade, cuidado e respeito.
 
Mas é isso que Paul Theroux faz. Tal como o seu livro descreve os lugares e as pessoas
Sim. Mas Theroux não me parece ter tanto respeito por aquilo que observa principalmente quando chega a Moçambique e diz que fica num sítio decadente à beira-mar chamado hotel Polana que é o cinco estrelas de Maputo. Na Balada do Níger é possível fazer duas viagens pelo livro: no capítulo das pessoas onde me interessa contar a história das pessoas, contar a minha experiência com as pessoas, no capítulo dos lugares dou a conhecer o meu olhar das cidades mais distintas de África.
 
Porquê o título A Balada do Níger?
Já não me lembro bem. (Risos) Os anos em que fiz estas viagens são anos da minha obsessão pelo Níger. A descoberta da fonte do Níger foi também uma obsessão para os russos e americanos do século XIX porque acreditavam que havia uma cidade, Tombuctu, que era o el-dorado onde todas as ruas eram pavimentadas a ouro e isso torna-a na cidade inatingível à qual era preciso chegar. Tombuctu fica nas margens do Níger. Porquê A Balada? A Balada porque remete para a música, para a sonoridade e para o som, algo que para mim me lembra África.
 
De que forma um jornalista consegue distanciar-se das emoções causadas por cenários de fome e marginalização?
As viagens que fiz foram feitas por curiosidade pessoal e não em trabalho e portanto não tive que fazer esse distanciamento. Mas se fosse em trabalho são vivências que marcam porque somos seres humanos com sentimentos. Para conviver com casos de fome e miséria não é preciso ir a África. Temos casos que acontecem à nossa porta. O caso mais tenebroso que vi foi de uma pessoa a morrer na rua numa cidade chamada Bombai, o centro mais cosmopolita do mundo. Aparentemente, estava a morrer de fome no meio da rua sem que ninguém tivesse parado para a ajudar. São coisas que marcam qualquer ser humano, mas da miséria e pobreza que vi também é possível ver pessoas com poucos recursos que vivem com dignidade. É uma lição de vida para qualquer um d e n ós .
Entrevista a Amílcar Correia
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Entrevista a Amílcar Correia

Entrevista ao diretor de conteúdos do P3, Amílcar Correia

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